Bienal São Paulo

 
O Centro do Coração Verde

A cada dois anos, o singular museu fundado pelo imigrante italiano Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo Matarazzo, volta a ocupar o imenso prédio projetado por Oscar Niemeyer, esse grande porta-aviões – alguém já disse – definitivamente ancorado no Parque Ibirapuera desde que os mandatários da cidade de São Paulo entenderam que a melhor maneira de comemorar seus 400 anos, o que aconteceria em 1954, seria engalanando-a de verde. Uma equipe projetou esse verde, compondo-o com o cinza das vias de pedestres e carros, com os planos lisos de bordas docemente sinuosas de seus lagos, onde durante os fins de semana, as famílias estendem os quadrados brancos e coloridos de suas toalhas de piquenique, brincando, rindo, comendo, dormindo, namorando, sempre com uma ponta de nostalgia que a visão da água inevitavelmente provoca no habitante de uma cidade tão carente dela, como São Paulo, cidade sem mar nem horizonte longínquo a permitir que a vista se desate. Se a alguns coube idealizar o verde, a Oscar Niemeyer coube o projetar branco, que é a cor dos três pavilhões e da extensa marquise que os une, marquise cujos contornos são caprichosamente irregulares, mais atrevidos que os do lago com os quais fazem contraponto, talvez porque tenham sido desenhados à mão para ser materializados em concreto, congelados em concreto. Foram pintados de branco em razão dos preceitos da arquitetura moderna sintetizados por Le Corbusier – influência maior entre os brasileiros e em seu arquiteto maior, Oscar Niemeyer –, como o "jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz". Brancos porque o artifício deve marcar sua diferença do verde; a razão, da natureza, ainda que sejam enamorados entre si, como sugere a sensualidade das curvas da marquise debaixo da qual hoje passeamos a pé em meio à multidão de garotos que deslizam em patins e skates. Como, mais ainda, sugere o quarto prédio pertencente ao conjunto, a Oca, a rigor uma esfera enterrada, um volume puro lentamente brotando do chão.

A cada dois anos, a Bienal de São Paulo, esse singular museu, volta a ocupar o terceiro, último e maior prédio entre os três ligados pela marquise. Antigo Pavilhão das Indústrias, desde 1957 ele sedia o evento a ponto de ser sua marca registrada. A ideia de um porta-aviões originou-se da contemplação desse edifício imenso, de 33 mil metros quadrados dispostos em três pisos, com formato de paralelepípedo, de um lado com paredes de vidro e, de outro, onde o sol bate, metálico, graças a seus para-sóis móveis que lhe garantem uma textura variável. Talvez a menção ao navio tenha se originado do fato de que ao longo dos 250 metros de extensão do prédio o terreno descai por 2 metros, e o grande volume acusa esse degrau como que se desprendendo do chão, como se flutuasse. Mas, por certo, onde mais o prédio nos faz lembrar um transatlântico é em seu interior, mais precisamente no vazio, no grande oco de bordas irregulares que une os três pisos. A laje de cada um deles se abre em curvas desencontradas, reverberações das curvas da marquise lá fora, para que o jogo de rampas sustentadas por pilares semelhantes a árvores possa subir até o último andar. E quem visitou a Bienal já viu: enquanto algumas pessoas vão subindo pelas rampas, uma ascensão demorada não por ser íngreme, mas porque a mudança de ponto de vista tem um quê de travelling cinematográfico, outras se comprazem em espiar o prédio com os cotovelos apoiados nos guarda-corpos dessas lajes que dão para o vazio. Gastam alguns minutos nessa pose como que fruindo a grandiosidade do espaço, num rito semelhante ao dos passageiros dos navios que se debruçam nas muradas apenas para contemplar o plano aberto das águas ou a vista das cidades que se encarapitam na linha fina do horizonte.

A cada dois anos, embora uma e outra vez essa regularidade tenha se alterado, como agora, coincidentemente agora, ou talvez seja melhor dizer, sintomaticamente agora, quando completa seus 50 anos e o peso da idade a obriga a pensar sua missão, a Bienal de São Paulo, esse museu inverossímil, volta a ocupar sua grandiosa sede no Parque Ibirapuera.

E ele tem uma forma curiosa de se anunciar: o silêncio. Durante dias o prédio não recebe as feiras e os eventos com os quais a instituição garante parte de seu sustento; durante dias não há nada, nenhum vestígio que se refira àquele público alheio à arte, desinteressado dela, com toda sua atenção barulhenta focada em eletroeletrônicos, artigos infantis, náuticos, hotelaria, desfiles de moda, artigos de camping, enfim, todo um elenco de produtos e atividades sobre os quais volta e meia se entende ser necessária a organização de uma feira para que seus cultores venham. Como um saneamento necessário, durante dias o Pavilhão acomoda-se em silêncio, só perturbado pelos passos e conversas amplificadas de algumas pessoas, ou porque alguém insiste em serrar ou pregar algo, ferindo as leves colunas de pó em suspensão construídas pelas lâminas de luz que atravessam as frestas laterais entre as placas dos para-sóis.

Aos poucos o silêncio vai sendo rompido pelos primeiros caminhões que chegam depositando as chapas de madeira, pelos mestres de obras que, com as plantas de arquitetura nas mãos, vão definindo os lugares em que as paredes serão levantadas, e os grupos de operários que se juntam para empurrar isso, para erguer aquilo. Há uma sinfonia crispada de ritmos e timbres mecânicos, característicos do cortar, do serrar, do pregar, do prender, do chumbar, dos gritos e apelos que se entrecruzam, dos chamados pelos intercomunicadores eletrônicos, porque o prédio é muito vasto e a atenção sempre um artigo de muita urgência, todos os sons se adensam, porque são sons de um tempo que vai escasseando, reparem que as caixas de obras de arte já vêm chegando subindo dos porões, de todas essas atividades, dizia, vai se elevando uma massa sonora cada vez mais intensa, até seu paroxismo, até que finalmente, passado um mês mais ou menos em que ela atuou intermitentemente, começa a cessar, a ser trocada por uma algaravia também ruidosa mas diferente.

Continuam os barulhos de serrar, cortar e perfurar, mas não são mais tão frequentes e tampouco abertos, e sim pontuais, porque agora se assiste ao momento em que o prédio começa a se converter numa babel, num porto onde desembarcam grupos de pessoas do mundo todo, que discutem entre si, falam em mau inglês com os outros membros dos outros grupos estrangeiros e com os técnicos que a Bienal designou para atendê-los. O vozerio é confuso e alto pelo estranho das falas e suas dicções, que se chocam umas com as outras. Às vezes indicam irritação e já se adivinha por que: há a monotonia da espera, há quem julgue que não se está fazendo o que foi prometido, que os operários são lentos etc., e todas essas reclamações surgem porque o que se deseja é pôr um fim logo àquilo para que então se possa viver, conhecer um pouco mais da grande cidade que surpreendeu já lá do alto, no avião, e que por ora só chega através dos grandes janelões e do rápido percurso que vai do hotel até o Ibirapuera. Com o tempo, na maioria dos casos, os ânimos vão se acomodando, até porque se compreende que a incompreensão é um dado natural numa circunstância como essa. E também porque a maioria dos estrangeiros que estão ali é veterana de escaramuças semelhantes, em outros países e em seus próprios. Em qualquer caso há sempre aquele que para, encosta-se na murada do grande vão contemplando a azáfama reinante no ambiente e considera a possibilidade de que, ao menos naqueles dias, a cidade de São Paulo, mais precisamente o prédio da Bienal, centro de seu coração verde, é um dos centros do mundo.

Agnaldo Farias

Este artigo é uma versão atualizada do texto que foi publicado em Agnaldo Farias (org.), Bienal 50 anos, 1951-2001. São Paulo: Fundação  Bienal de São Paulo, 2001.

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